Traduzi (e levemente adaptei) aqui um artigo do Cory Doctorow, o escritor de ficção científica que cunhou o termo “Enshittificação” (descrevendo o ciclo típico de contínua piora de serviço adotado por empresas de tecnologia), sobre essa mudança no Android.
Acho interessante a contextualização dessa decisão nos desdobramentos no processo antitruste de Epic. Segue abaixo.
(Não estranhe a quantidade de links – é parte do estilo desse blog, tanto que o subtítulo é Pluralistic, Links Diários por Cory Doctorow
)
William Gibson disse a famosa frase: “Cyberpunk foi um aviso, não uma sugestão”. Mas para cada líder de tecnologia que sonha em lobotomizar seus inimigos com o “Black ICE”, há dez que gostariam de ser Darth Vader, estrangulando você com o poder da Força enquanto bravejam: “Estou alterando o acordo. Reze para que eu não o altere mais”.
Eu chamo essa filosofia de negócios de “MBA em Darth Vader”. O fato de os produtos de tecnologia estarem permanentemente vinculados aos seus fabricantes – por meio de uma nuvem com restrições de propriedade intelectual como retaguarda que impede você de desativá-la – significa que seus dispositivos podem ter recursos removidos ou alterados por capricho empresarial, e é literalmente um crime restaurar a funcionalidade que foi removida.
Isso representa uma tentação irresistível para os chefes da tecnologia. Significa que:
Junte os “acordos” que devemos aceitar após entregarmos nosso dinheiro, nos quais “consentimos” em ter os termos alterados – a qualquer momento, de qualquer forma, para sempre – e renunciamos ao nosso direito de processar, o fato de que bilhões de ferramentas digitais podem ser neutralizadas à distância com um único clique do mouse, e o fato de que a lei de propriedade intelectual torna literalmente um crime desfazer essas alterações ou adicionar recursos à sua propriedade que o fabricante não quer que você tenha, e você criou as condições perfeitas para uma distopia de MBAs em Darth Vader.
Os chefes da tecnologia estão fundamentalmente em guerra com a ideia de que nossos dispositivos digitais contêm “computadores de propósito geral”. A universalidade dos computadores – o fato de serem todos máquinas de Von Neumann universais e Turing-completas – criou fortunas para os chefes da tecnologia, mas agora que essas fortunas foram alcançadas, o setor de tecnologia gostaria de abolir essa universalidade; especificamente, eles gostariam de tornar impossível a execução de programas que corroam seus lucros ou frustrem suas tentativas de rentismo.
Essa tem sido uma tendência crescente na computação desde meados dos anos 2000, quando os chefes da tecnologia perceberam que a “gestão de direitos digitais” pela qual a indústria do entretenimento se apaixonou poderia gerar dividendos ainda maiores para as próprias empresas de tecnologia.
Desde a era do Napster, as empresas de mídia exigem que as plataformas tecnológicas descubram como limitar o uso e a cópia de arquivos de mídia depois que eles são entregues aos nossos computadores. Elas acreditavam que havia uma maneira prática de criar um computador que se recusasse a receber ordens de seu proprietário, de modo que fosse possível (por exemplo) “streaming” um filme para um usuário sem que isso fosse um “download”. A verdade, claro, é que todos os streamings são downloads, porque a única maneira de fazer com que minha tela exiba um arquivo de vídeo que está no seu servidor é o seu servidor enviar esse arquivo para o meu computador.
“Streaming” é um delírio consensual, e quando uma empresa afirma estar oferecendo um “streaming” que não é um “download”, ela na verdade quer dizer que acredita que o programa que está renderizando o arquivo na sua tela não possui um botão “salvar como”.
Mas é claro que, mesmo que o programa não tenha um botão “salvar como”, alguém poderia facilmente criar um plugin “salvar como” que adicionasse essa funcionalidade ao seu programa de streaming. Portanto, “streaming” não é apenas “um programa de reprodução de vídeo sem um botão ‘salvar como’”, é também “um programa de reprodução de vídeo ao qual é impossível adicionar um botão ‘salvar como’”.
Na virada do milênio, as empresas de tecnolgia desse ramo engabelaram as gigantes da mídia alegando que criaram um meio técnico de prevenir a adição do botão “salvar como” no futuro. Mas elas sabiam que não tinha meio técnico de preveni-lo, pois computadores são de propósito geral e rodam qualquer programa, ou seja, cada muro de 3 metros construído ao redor de um programa convida uma escada de 3,5m ao redor.
Quando uma empresa de tecnologia diz, “é impossível alterar os programas e dispositivos que enviamos aos nossos usuários”, ele querem dizer que é ilegal alterar os programas e dispositivos enviados aos usuários. Isso é graças a um conjunto de leis chamado “propriedade intelectual” (PI); é um rótulo que se aplica a qualquer lei que permite uma entidade exercer controle sobre a conduta de usuários, críticos e competidores.
O campo de batalha na Guerra contra a Computação de Propósito Geral (sobre a qual venho alertando há décadas) é jurídico, não tecnológico. Quero dizer que se não fossem as proibições legais contra engenharia reversa e “interoperabilidade à revelia”, nenhuma dessas táticas rentistas funcionaria. Cada vez que uma empresa piorasse seus serviços, seria uma oportunidade de um rival aparecer, despiorá-los e atrair clientes para si.
A ausência de um meio técnico de assegurar essas restrições significa que as empresas que se beneficiam delas devem negociar com legisladores, não com consumidores. Se funcionasse, seria parte da proposta de vendas, como é o caso do Signal, cuja segurança real e confiável é grande parte do seu apelo para os seus usuários.
Quando algo não funciona, você coloca na sua proposta de lobby, como a Apple, que justifica o “ICMS” particular absurdamente alto de 30% – que só conseguem cobrar porque é um crime fazer engenharia reversa no seu celular para instalar uma loja de terceiros – dizendo que ter uma plataforma altamente fechada é essencial para segurança e privacidade dos donos de iPhone.
Apple e Google são um duopólio na computação móvel. Ambas usam táticas jurídicas para garantir que os usuários irão baixar apps nas lojas das próprias companhias, onde eles tomam 30 centavos de cada dólar gasto, e é contra as regras usar qualquer meio de pagamento além de o do dono.
É uma grande máfia. São bilhões de dólares com essa medida rentista. Isso aumenta custos para os usuários, diminui lucros dos fornecedores e permite ao duopólio estruturar toda a economia do ecossistema mobile, agindo como reguladores do mercado de facto. Por exemplo, o fato de Google e Apple isentarem o Uber e Lyft do “ICMS” de 30% significa que eles são os únicos capazes de fornecer serviços de motoristas por aplicativo a preços competitivos.
Apesar de ambas extraírem 30% em impostos, elas se valem de mecanismos bem diferentes para atar as mãos usuários e desenvolvedores. Apple usa travas digitais, que a permite punir, com toda a força da lei de PI, quem faz engenharia reversa para fornecer meios mais fáceis de instalar lojas melhores.
Google, por outro lado, usa uma variedade de armas contratuais para manter seu domínio, que dão pouca alternativa às fabricantes e às operadores se não embutir sua loja de aplicativo, geralmente com um bootloader travado que nos impedem de adicionar outras lojas depois que eles pagam pelos seus dispositivos.
Mas, apesar disso, o Google sempre afirmou que o Android é a alternativa “aberta” ao “ecossistema” da Apple, principalmente com base no fato de que você pode fazer “sideload” de um aplicativo. “Sideload” é um eufemismo estranho que o duopólio móvel inventou; significa “instalar software sem nossa permissão”, o que costumávamos chamar simplesmente de “instalar software” (porque você não precisa da permissão do fabricante para instalar software no seu computador).
Agora, a Google deu uma de Darth Vader, mudando o acordo retroativamente. Eles anunciaram que, a partir de agora, você só poderá fazer o sideload de aplicativos de desenvolvedores que pagam para serem validados pela Google e certificados como bons. Isso deixou as pessoas realmente irritadas, e com razão.
Na semana passada, um herói do Direito a Reparar, Louis Rossmann, postou um vídeo ácido criticando duramente o Google pela mudança. No vídeo, Rossmann — que agora comanda um grupo anti-‘enshittificação’ chamado Fulu — nos lembra que nossos dispositivos móveis não são telefones, eles são computadores e nos incentiva a não usar o termo “sideloading”, porque isso é admitir que o fato de esse computador caber no seu bolso significa de alguma forma que você não deveria poder, sabe, simplesmente instalar software. Rossmann acredita que isso seja só mais esquema ganancioso, e ele tem razão – em parte. Ele acredita que essa é uma maneira do Google lucrar forçando desenvolvedores a aderirem ao seu programa de certificação.
Mas isso é só uma mixaria. A verdadeira grana são as centenas de bilhões de dólares que o Google pode perder se migrarmos para lojas de aplicativos de terceiros e cortarmos o imposto sobre aplicativos.
Essa é uma questão que está muito na cabeça da Google agora, já que ela perdeu um caso antitrust brutal movido pela Epic Games, criadora do Fortnite. O processo da Epic alegava que a Google havia violado a lei antitruste ao criar acordos de exclusividade com operadoras e fabricantes de dispositivos que restringiam os usuários do Android à loja de aplicativos da Google, o que significava que a Epic tinha que entregar 30% de seus lucros com dispositivos móveis à Google. A derrota parece ter algo a ver com o fato de que juízes não gostam quando você destrói evidências para obstruir a justiça.
Dizem que quando você se encontra em um buraco, deve parar de cavar, mas a Google não consegue largar a pá. Depois que o tribunal ordenou que o Google abrisse sua loja de aplicativos, a empresa simplesmente ignorou a ordem, algo que os juízes odeiam ainda mais do que destruir provas.
Então, no mês passado, a Google se viu com apenas duas semanas para cumprir uma ordem de tornar possível a instalação de novas lojas de aplicativos como aplicativos, para que você pudesse acessar a Google Play, procurar uma loja de aplicativos diferente e, com um único clique, instalá-la no seu celular e passar a obter seus aplicativos dessa loja, em vez da do Google.
É isso que está por trás da nova proibição da Google ao “sideload”: trata-se de uma forma de cumprimento malicioso das ordens judiciais decorrentes das perdas para a Epic Games. Na verdade, nem sequer se trata de cumprimento malicioso – trata-se de descumprimento malicioso, uma medida que falha tão claramente em satisfazer a ordem judicial que acredito ser apenas uma questão de tempo até que a Google seja atingido por multas tão elevadas que realmente lhes afetem as operações.
Enquanto isso, a história da Google de que essa medida é motivada por questões de segurança é obviamente uma balela. Em primeiro lugar, o argumento de que impedir os usuários de instalar softwares de sua escolha é a única maneira de proteger sua privacidade e segurança é balela quando a Apple o utiliza, e é balela quando a Google o apresenta. [ Link para uma carta de Bruce Schneier, especialista em segurança digital, ao Congresso dos EUA ].
Mas mesmo que se conceda que a Google está fazendo isso para mantê-lo seguro, a história cai por terra. Afinal, a Google não está certificando aplicativos, ele está certificando desenvolvedores. Isso implica que a empresa pode, de alguma forma, prever se um desenvolvedor fará algo malicioso no futuro.
Isso é obviamente errado. De fato, a própria Google é a prova de que isso não funciona: o fato de uma empresa ter o lema “não seja mau” desde o início não é garantia de que ela não se tornará má no futuro.
Há um longo histórico de comerciantes que se comportam de maneiras inócuas e benéficas para acumular capital de reputação, antes de utilizá-lo para cometer crimes depravados contra as pessoas que confiam neles. Este é um problema bem comum em sistemas com pontuações de reputação, que remonta aos primórdios do eBay, quando vendedores desonestos inventaram a tática de anunciar e entregar uma série de itens de baixo valor para acumular uma pontuação de reputação alta, para logo depois publicar uma série de golpes de valor alto, como dezenas de laptops a US$ 1.000 cada, que nunca são entregues, enquanto o vendedor sai com dezenas de milhares de dólares.
Mais recentemente, vimos isso em ataques de supply chain contra softwares de código aberto, onde agentes maliciosos passam muito tempo servindo como colaboradores úteis, distribuindo uma série de patches menores e de alta qualidade antes de um dia lançarem um backdoor ou um pacote de ransomware em códigos amplamente utilizados.
Portanto, a ideia de que a Google pode melhorar a segurança do Android certificando desenvolvedores, em vez de código, é obviamente balela. É apenas um pretexto, uma maneira de evitar o cumprimento da ordem judicial no caso Epic e de lucrar mais alguns bilhões de dólares em impostos sobre aplicativos.
A Google não é amigo de computadores de uso geral. Ela continua inventando maneiras de invocar a lei para punir pessoas que instalam códigos que fazem com que seus dispositivos Android sirvam aos interesses de seus proprietários, às custas dos acionistas do Google. Há apenas alguns anos, tivemos que forçar a Google a desistir de um plano para bloquear navegadores para que ficassem tão travados quanto os aplicativos, algo que a Google vendia como “paridade de recursos”:
A Epic Games não processou apenas a Google. Ela também processou a Apple – mas a Apple venceu, porque não destruiu provas e não deixou o juiz furioso. Mas a Apple não saiu ilesa – ela também recebeu ordens para afrouxar o controle sobre sua App Store, e também não o fez, o que fez com que, mais cedo esse ano, um juiz federal ameaçasse prender executivos da Apple:
Nem a Apple nem a Google existiriam sem o milagre moderno que é o computador de propósito geral. Ambas as empresas querem garantir que ninguém mais se beneficie da Turing-completude, a máquina universal de von Neumann. Ambas são capazes de inventar narrativas intermináveis sobre como a Turing-completude é incompatível com a sua privacidade e segurança.
Mas são a Google e a Apple que se interpõem no caminho da nossa segurança e privacidade. Embora às vezes nos protejam contra ameaças externas, nem o Google nem a Apple jamais nos protegerão de seus próprios instintos predatórios.